"Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor: apenas respeitadas, como a única coisa que resta a um[a mulher inundada] de sentimentos." (OM)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Debaixo das Flores


Estava ela, como todos, absorta em pensamentos sobre o leito da clínica de recuperação, quando o estrondo do portão que bateu com força do lado de fora do quarto encaminhou-a para tristes lembranças. Tiro? Um olhar de medo tomou conta de sua face que tentava se esconder agora sob o leito. Diante do lençol entre suas mãos desvairava. Sangue... Ao seu redor havia olhares curiosos aos quais suplicava ajuda: “Chamem a ambulância, Andréia está ferida!”, mas estes não eram mais pedestres na rua, tampouco havia alguém em seus braços. A chegada do enfermeiro fez-la sorrir de esperança. Andréia está a salvo! À medida que aquele antídoto sonolento contra memórias trágicas percorria suas veias, retomava a consciência: Tarde demais, as belas flores não conseguiram esconder a feia tragédia. Não houvera mais nada a fazer.

Tati Valença

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Oásis




Sempre mantive um obscuro fascínio sobre a arte, sabia que ela saciava minha sede, mas ela sempre esteve fora do meu alcance. Eu mal sabia desenhar um coração...
Em dias chuvosos eu comprava um pacote de sulfites e pegava os velhos lápis de cor, assim pela metade, mal cuidados, e tentava exprimir-lhes um pouco do que dentro de mim havia. Saiam apenas borrões mal feitos, sombras longínquas do que eu realmente desejava expressar.
Comprei uma tela. Branca. Límpida. Ansiosa de alguém que lhe desse cores e formas múltiplas, que lhe imprimisse vida, construísse nela uma história com profundidade. Sujei-a com meus desgostos. Meus dedos lhe eram rabiscos fracos e sem nexo. Rabiscos toscos, sem significados. Sem vida.
Apareci um dia numa exposição de uma galeria de arte. E vivi a arte imunda e triste dos neoclássicos. Passava horas olhando sem prazer as velhas pinturas, e me impregnando de arte sem alma. Olhava traços marcantes e realistas que me levavam somente a minha melancólica realidade. E durante esses momentos eu chamava aquilo de arte, apreciava aquele estereótipo da realidade, frio e sujo.
Talvez algumas imagens nas telas remetessem a histórias significantes do pintor, mas eram vazias ao meu olhar.
Foi então que um dia o vento voou e veio parar em minhas mãos um convite de uma exposição surrealista. Meu primeiro ímpeto foi amassar e jogar no lixo. Amassei. E talvez pela minha incitante curiosidade, abri. Não joguei. Guardei. Chegou o dia. Disse não. Disse sim. E fui sozinha, com medo de me perder ainda mais na arte.
Naquele dia sem esperar eu encontrei. Encontrei as pinturas que muito diziam sobre mim. Encontrei o pintor. Visitei seu grandioso mundo e descobri meu lugar no seu. Ele me mostrou seu ateliê. Levou-me para dentro de si. Tomou-me nos braços e desenhou meu corpo radiante em sua tela. Era assim que ele me via, era assim que eu estava pela primeira vez. E fez de meu corpo a sua tela também. Desenhou em mim uma estrela que brilhava e explodia de forma e cores no nosso pequeno mundo.
Cheguei em minha casa e corri a tela suja. E sorrindo por ele, minhas mãos sabiam exatamente o que fazer. Aprendi a pintar. Pintei uma, duas, três, cem, mil estrelas e já não mais me reconhecia. Pintei nosso oásis surreal com meu cavalo protetor. Pintei nossa forma de amor. E eu podia morrer de pintar o que agora já era nosso universo.
Com ele, cada novo dia é uma nova estrela. Um pedaço do nosso universo descoberto. Um olhar profundo que só transborda felicidade.